QUARTA-FEIRA DE CINZAS
POR: Tios Luizinho e Renata, da Equipe de Intercessão
Toda celebração cristã está animada pelo espírito do Ressuscitado. Por isso, também a Quarta-feira de Cinzas só tem sentido em função da Páscoa. É verdade que se trata de uma celebração que nos lembra a finitude da vida, de que “somos pó e ao pó voltaremos”, que nos exorta a nos convertermos e crermos no Evangelho. Mas mesmo as Cinzas, como sacramental, possibilitam a experiência da graça pela oração da Igreja e o acolhimento pela fé.
Com a Quarta-feira de Cinzas, iniciamos esse período bonito da Quaresma, tempo litúrgico de reconstrução de cada um de nós e da comunidade; tempo que nos motiva a colocar em questão a razão de ser da vida – para que vivemos? sobre o que está fundamentada a nossa vida? para onde caminhamos? – . São essas as perguntas de fundo da Quaresma. Por isso ela nos propõe a palavra conversão e seus exercícios de oração, jejum e caridade. Mas a conversão não é simples mudança exterior no modo de ser e agir, e sim “mudança de senhor”. Quaresma é tempo forte para consultar o interior e verificar qual é o “senhor” que move o nosso coração. Como assim, você pode perguntar, se servimos ao Senhor Jesus?
A questão é que por conta do nosso pecado, das nossas debilidades e egoísmos, “construímos” muitas vezes para nós um Jesus “à nossa imagem e semelhança”, segundo nossos gostos, critérios e preferências; um Jesus que achamos mais fácil seguir, mais conveniente e que, em vez de servirmos, serve a nossos propósitos, a nossos esquemas predefinidos, a nossos conceitos previamente formados (preconceitos). Eis o problema de muitos cristãos que caem em rigorismos, fundamentalismos, apegos excessivos a tradições e leis que, mal interpretadas e não devidamente contextualizadas, escravizam e mutilam o destinatário dessas mesmas leis: o ser humano (Mc 2, 27). Se lemos e rezamos com atenção os Evangelhos, vemos que um dos mais frequentes enfrentamentos de Jesus ao longo de seu ministério foi interpelar fariseus, escribas e doutores da lei – os “representantes” e “intérpretes” da religião – a perceberem a Lei de Deus sob outra perspectiva, menos fossilizada e estéril e mais humana e fonte de vida.
Algo muito parecido tem ocorrido nos dias de hoje. Por isso, precisamos urgentemente nos converter ao Jesus dos Evangelhos, como insiste o Papa Francisco. E nada melhor que o tempo quaresmal a nos mostrar esse Senhor que decide subir até Jerusalém, em fidelidade à sua missão de ternura, misericórdia, compaixão, solidariedade, perdão, justiça, fraternidade e amor, ainda que isso significasse ir até às últimas consequências. Valia a pena para Jesus apostar tudo no Pai!
Pois a Quaresma nos remete ao essencial de Jesus e de sua missão. E as Cinzas nos remetem ao essencial de nossas vidas: “lembras de que és pó e ao pó voltarás”. É desde aqui que podemos perceber a ligação com as práticas quaresmais: oração, jejum e caridade. Pois essas práticas também nos remetem ao núcleo essencial e relacional do nosso ser: oração, ao nosso núcleo essencial relacional com Deus; jejum, ao nosso núcleo essencial relacional com as coisas; e caridade, ao nosso núcleo essencial relacional com os outros. Nesse sentido, as Cinzas tornam nossa vida mais colorida, pois simbolizam que queremos acender e incendiar todas as dimensões relacionais essenciais do nosso ser, tornando-o mais autêntico e iluminado, livre, leve e disponível para o Senhor.
Por ser um tempo especial para alimentar nossos laços comunitários, a Igreja no Brasil nos apresenta, durante a Quaresma, a Campanha da Fraternidade (CF), destacando algum aspecto da caminhada cristã que merece ser aprofundada, refletida, rezada, desembocando num compromisso que deve estar sempre em sintonia com o Evangelho. Este ano o tema é “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”, cuja lema é: “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Ef 2,14).
O isolamento sanitário, pelo qual estamos passando, põe às claras esta dura realidade: há anos temos vivido o distanciamento social e político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes, o esvaziamento do diálogo… Parece que uma voz surda está presente a nos insinuar: “devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes…” E da distância vem o isolamento; do isolamento a acusação; da acusação o ódio, muitas disfarçado de “verdade”. Infelizmente nossas Igrejas e comunidades não passaram imunes por esse processo.
Mas para nós, cristãos, nenhum tipo de diferença (de cultura, gênero, religião, raça, classe social…) deveria romper o fluxo do respeito e diálogo entre os seres humanos, dando lugar a atitudes de violência ou ódio no convívio humano. Pois quando analisamos elementos que nos unem, vemos que todos temos origem e destino iguais: habitamos a mesma casa comum, somos formados da mesma matéria (argila) e em todos nós sopra o mesmo Espírito. Já seriam elementos mais que suficientes para reconhecer que há vínculos que nos unem, que podemos ser irmãos e que devemos nos deixar conduzir pelas relações fraterno-igualitárias, pela aceitação mútua da alteridade diferente, sem jamais esquecer do totalmente Outro, de cuja fonte tudo tem sua origem. Se nos lembrássemos de que o mandamento do Senhor é nos amarmos como Ele nos amou, veríamos que o tema e o lema da CF 2021 são apenas consequência dessa orientação e que deveríamos abraçar essa campanha com todo o coração.
As Cinzas que são colocadas sobre nossas cabeças devem despertar em nós a consciência que todos procedemos do pó; são as cinzas que nos unificam e quebram toda pretensão de poder, de vaidade, de querer se colocar acima dos outros. O que a cultura do ódio e da indiferença separa, as cinzas fazem a liga e reatam os vínculos. É com o barro das cinzas que somos reconstruídos como seres humanos, quebrados pela violência, preconceitos e ódios. Mas precisamos, nós em primeiro lugar, como o mito da fênix, sermos regenerados dessas mesmas Cinzas e renascermos pessoas novas em Cristo.
Que ao participarmos da celebração da Quarta-feira de Cinzas, assumamos esse compromisso de crescermos em tolerância, respeito e acolhimento do outro, procurando sempre ser causa e fonte de paz, jamais de intolerância, divisão ou desrespeito. De iniciarmos a Quaresma e seus exercícios com carinho e profundidade, para seguirmos o Cristo dos Evangelhos, sem rigorismos e fundamentalismos. Com esse ardor, a monocromia cinzenta, aparentemente proposta pela celebração de hoje, será fonte de luzes e cores em nossa vida e em nossa sociedade, expressão da unidade na diversidade desejada pelo Espírito do Ressuscitado, que sopra onde quer.